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19/09/2011

A Épica Portuguesa no séc. XVI - Fidelino de Figueiredo


«CAPITULO DECIMO QUINTO
ANTONIO FERREIRA E A IDEA FIXA DA EPOPEA

 A pequena obra deste poeta é um documento importante para a história do convivio litterario na primeira metade do seculo XVI, para a reconstituição da ideologia moral e esthetica que enchia o espirito dum renascentista português do grande seculo e tambem para a historia da critica litteraria, por conter discussão de valores e affirmação de technicas e de methodos de trabalho. Sob este ultimo aspecto já a utilisei na monographia que em 1910 redigi ácerca da historia da critica em Portugal.
 Muito poucas, mas muito firmes ideas enchem a obrinha de Ferreira: louvor da lingua portuguesa e necessidade e dever de a cultivar e preferir a todas; panegyrico e pintura da ideal belleza e do ideal amor; dôr da perda desse alvo do amor platonico e desse modelo de debuxo; queixas contra a publica indifferença pela poesia; elogio da simplicidade e da vida retirada, e, em reacção ou contra-partida, caloroso encomio da vida heroica; conselhos de moderação, sabedoria e justiça aos reis e aos collaboradores da governação publica; e exhortações aos poetas amigos para que entoem cantos à gloria portuguesa.
 Verdadeiramente estes conceitos da opportunidade da poesia heroica, para a qual repetidamente se confessa inapto, da abundancia de themas nacionaes, da alta funcção da poesia heroica tida por suprema recompensa e poderoso estimulo de novos emprehendimentos foram em Ferreira ideas fixas. Rastreemo-las nos seus versos.
 No soneto XXIX do livro II, lamentando o olvido em que jaziam os grandes nomes de Portugal, congratula-se pelo apparecimento dum cantor dessas glorias:

Eis que já vos nasceu hum novo sprito
De cuja voz sereis no Mundo ouvidos,
Por cuja mão sayreis da sepultura.

Duas vidas, dous lumes concedidos
Vos são, de que alça a fama immortal grito.
Vida no verso, vida na pintura.
 (Pag. 40 do 1º vol. da ed. de 1829.)

 Quem seria este "novo sprito"? Ocorre o nome de Jeronymo Côrte-Real, que foi poeta e pintor.
 Sentimento quasi analogo se expressa na ode I do livro I, imitada do Livro III, de Horacio:

 Fuja daqui o odioso
 Profano vulgo, eu canto
 As brandas Musas, a hus spritos dados
 Dos ceos ao novo canto
 Heroico e generoso
 Nunca ouvido dos nossos bõs passados.
 Neste sejam cantados
 Altos Reys, altos feitos,
 Costume-se este ar nosso á lira nova.
 Acendei vossos peitos,
 Ingenhos bem criados,
 Do fogo, qu'o Mundo outra vez renova.
 Cad'um faça alta prova
 De seu sprito em tantas
 Portuguesas conquistas, e victorias,
 De que ledo t'espantas,
 Oceano, e dás por nova
 Do Mundo ao mesmo Mundo altas historias.
 (Ibidem, pag. 111.)

 Na ode I do livro II annuncia jubilosamente ao infante D. Duarte, filho de D. Manuel I, que o poeta Pedro de Andrade Caminha se propõe celebra-lo:

 Serás escrito, e em alto som cantado
 Da grave e doce lira
 D'Andrade pera ti só dos Ceos dado,
 Que á gloria, a que já aspira,
 Igual favor lhe inspira
 Teu animo, Duarte,
 Planta real, honra de Apollo e Marte.
 Aos teus altos tropheus, que levantados  
 Com tanto espanto, e gloria  
 Já vejo; aos triumphaes arcos ornados
 Das prêsas de victoria
 Alta, e immortal memoria
 Dará, e vivo na terra
 Deixando teu grã nome em paz, e em guerra.
 (Ibidem, pag. 129.)

 Na ode VIII, do livro I, exhorta D. Antonio de Vasconcellos a glorificar no verso heroico os feitos portugueses:

 Té quando assi, cruel, o peito duro,
 Das nove irmãs morada
 Cerrarás, como ingrato ao dom divino?
 Té quando assi negada
 Do liquor doce e puro
 Nos será a copia, e parte igual devida
 Do lume, de que tu foste assi digno?
 Não te foy dada a vida,
 Não esse sprito aceso em alto fogo
 Para ti só; nosso he, o nosso queremos.
 Vença já o justo rogo
 Á dura força, Antonio, e restituida
 Nos seja a parte já do que em ti temos.
 Eu digo o canto teu, eu digo a lira,
 Que te dá o louro Apollo,
 Para honra sua e para gloria nossa,
 Que d'hum ao outro polo
 Soará; já te inspira
 Novo furor, ah solta o doce canto,
 Contra o qual nunca inveja, ou tempo passa!
 Tardas, cruel, e em tanto
 Altos Reys, altas armas perdem nome.
 Escruece-se o Amor, quem ha, qu'o abrande?
 Quem ha, qu'a cargo tome
 As victorias de fama, e eterno espanto
 Dos Reys passados, quaes Deos sempre mande?
 Altas victorias, em que tanta parte
 Tem inda os tão chegados
 Teus avós ao Real sangue, ás altas Quinas,
 De louro coroados
 Por mão do bravo Marte;
 Ah porque lhes serão por ti negadas
 As altas Rimas de seus nomes dignas?
 As bandeiras tomadas
 A Reys vencidos em tão justas guerras,
 Aquellas fortes mãos, que coroavam Reys grandes em suas terras
 Por ferro, e fogo de tão longe entradas  
 A ti seu sangue já s'encomendavam.
 Mas em quanto tua sorte te não chama
 Das armas á dureza.
 (Inda tempo virá) com as Musas paga
 Á antiga fortaleza
 Dos teus, á imortal fama
 Que por exemplo ao mundo sempre viva
 Contra a morte cruel, que tudo apaga;
 Outr'hora a chama viva,
 Qu'o cego moço, onde quer, acende,
 Com teus suaves versos nos abranda.
 E a que nos tanto offende
 Cruel aljaba sua lhe cattiva.
 Isto te pede Apollo, isto te manda.     
(Ibidem, pag. 126-28.) (...)»
  
FIGUEIREDO, Fidelino de. Antonio Ferreira e a idea fixa da epopea. In: A Épica Portuguesa no século XVI. Edição fac-similada com apresentação de Antônio Soares Amora. São Paulo: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1950. pp. 281-284.




Letícia Valle




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