João Cabral de Melo Neto (1920-1999)
O universo poético de João Cabral de Melo Neto, autor inserido no Modernismo brasileiro, é principalmente, o da zona da mata e do sertão nordestino. Sua poesia remete o leitor constantemente às cidades de Olinda e de Recife com seus casarões antigos, seus mares e rios importantes como o Beberibe e o Capibaribe, e aos canaviais da zona da mata pernambucana. Mas também remete para a vegetação escassa da caatinga e à dor do agreste brasileiro. Por isso mesmo, dois de seus livros, Pedra do sono, de 1942 e A educação pela pedra, de 1966, trazem no título a idéia de pedra, símbolo da secura sertaneja e do solo pedroso da região.
As produções iniciais de João Cabral de Melo Neto, contudo, ressentem-se de uma matéria-prima mais significativa. Apenas com este poema longo, O cão sem plumas, a linguagem depurada parece encontrar uma temática a altura: o rio Capibaribe, que corta a cidade de Recife, rio-detrito, com sua sujeira, seus detritos com a população miserável que lhe habita as margens, trágico espelho do subdesenvolvimento. O cão desemplumado, portanto, é a metáfora de Cabral para o rio Capibaribe e sua cinzenta convivência com os homens-caranguejos, que também são cães sem plumas. "Difícil é saber/ se aquele homem/ já não está/ mais aquém do homem".
O poema foi publicado em 1950, em Barcelona, e inicia um ciclo de poemas em que o poeta explicita sua preocupação com a realidade nordestina e a denúncia da miséria. Busca, em meio uma atmosfera mineral, a vida possível. Ressalta-se na redundância, na duplicação de palavras e ritmos, o poema sugere a cadência da prosa e a monotonia das águas barrentas do Capibaribe, cão sem pêlo ou pluma, reduzido só a detritos e lama.
Anterior à peça em versos Morte e Vida Severina (escrita em 1954-55), esse cão despossuído de adornos representa um dos momentos mais altos da criação cabralina.
Poema soberbo, O Cão sem Plumas é a descrição das condições sub-humanas nas palafitas e mocambos do Recife. A dicção é dura, como convém ao tema, mas nunca resvala para o panfleto. “Só mesmo um grande artista poderia assumir ecos de um discurso social sem ser panfletário, romântico ou esteticista”, escreve o colunista Daniel Piza (Gazeta Mercantil, 18/10/1999). É um longo e hermético poema que denuncia não só o estado do rio, mas também a situação de exclusão da população ribeirinha, à margem de tudo.
O poema se constrói em duas instâncias geográficas: a da geografia física, que reflete sobre as questões regionais propriamente ditas (a descrição do rio, sua desembocadura, seus mangues e o processo de seu desaguamento no mar), e a da geografia humana, que nos faz pensar não só sobre as condições sociais e econômicas do homem que habita suas margens, mas também sobre o que faz de um homem um homem, ou seja, o poema parte de uma reflexão sobre a região e se completa com outra de caráter mais universal.
Há ainda, para a compreensão do poema, de se relevar uma oposição: a que o autor criou entre as coisas como deveriam ser e as coisas como na realidade se apresentam. Assim, ao falar da água do rio, ele sonha com a água perfeita (a água do copo, a água da chuva azul, a água que se abre aos peixes, a águaA? que teria os enfeites ou as plumas das plantas), ao mesmo tempo em que sofre ao constatar que ela não existe no rio Capibaribe, cuja água tem lodo, ferrugem e lama. Também, ao se referir ao habitante das margens do rio, o autor reflete sobre o que um homem devia ser (sonho e pluma) e se revolta diante da dificuldade de achar, naquele ser, um homem.
Outro ponto que se pode ressaltar é a pertinente análise do meio ambiente, sem isolá-lo das questões humanas - rio e homem são entidades indissociáveis no poema, tão confundidos que não é possível saber onde um começa e outro termina; a pobreza e a negritude do rio é causa da pobreza do homem negro de lama.
No poema, que se compõe de quatro momentos (Paisagem do Capibaribe, I e II; Fábula do Capibaribe, III e Discurso do Capibaribe, IV), os versos a seguir, extraídos do IV momento, ilustram com precisão o que foi dito acima:
Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado. Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem.
Por fim, há um claro posicionamento do poeta no sentido de chamar o leitor à reflexão sobre o fato de que o rio será aquilo que o homem fizer dele, como a ave que conquista o seu vôo, e sobre a sociedade, que transforma o rio num não-rio, o mar num não-mar, o mangue num não-mangue e o homem num não-homem.
Poema na íntegra
I. Paisagem do Capibaribe
A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.
O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão.
Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água.
Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos polvos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores pobres e negras como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros. Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.
Liso como o ventre de uma cadela fecunda, o rio cresce sem nunca explodir. Tem, o rio, um parto fluente e invertebrado como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver (como ferve o pão que fermenta). Em silêncio, o rio carrega sua fecundidade pobre, grávido de terra negra.
Em silêncio se dá: em capas de terra negra, em botinas ou luvas de terra negra para o pé ou a mão que mergulha.
Como às vezes passa com os cães, parecia o rio estagnar-se. Suas águas fluíam então mais densas e mornas; fluíam com as ondas densas e mornas de uma cobra.
Ele tinha algo, então, da estagnação de um louco. Algo da estagnação do hospital, da penitenciária, dos asilos, da vida suja e abafada (de roupa suja e abafada) por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação dos palácios cariados, comidos de mofo e erva-de-passarinho. Algo da estagnação das árvores obesas pingando os mil açúcares das salas de jantar pernambucanas, por onde se veio arrastando.
(É nelas, mas de costas para o rio, que "as grandes famílias espirituais" da cidade chocam os ovos gordos de sua prosa. Na paz redonda das cozinhas, ei-las a revolver viciosamente seus caldeirões de preguiça viscosa).
Seria a água daquele rio fruta de alguma árvore? Por que parecia aquela uma água madura? Por que sobre ela, sempre, como que iam pousar moscas?
Aquele rio saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte Em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas?
II. Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem o rio fluía como uma espada de líquido espesso. Como um cão humilde e espesso.
Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas coaguladas na lama; paisagem de anfíbios de lama e lama.
Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado.
Um cão sem plumas é quando uma árvore sem voz. É quando de um pássaro suas raízes no ar. É quando a alguma coisa roem tão fundo até o que não tem).
O rio sabia daqueles homens sem plumas. Sabia de suas barbas expostas, de seu doloroso cabelo de camarão e estopa.
Ele sabia também dos grandes galpões da beira dos cais (onde tudo é uma imensa porta sem portas) escancarados aos horizontes que cheiram a gasolina.
E sabia da magra cidade de rolha, onde homens ossudos, onde pontes, sobrados ossudos (vão todos vestidos de brim) secam até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor os homens sem pluma. Estes secam ainda mais além de sua caliça extrema; ainda mais além de sua palha; mais além da palha de seu chapéu; mais além até da camisa que não têm; muito mais além do nome mesmo escrito na folha do papel mais seco.
Porque é na água do rio que eles se perdem (lentamente e sem dente). Ali se perdem (como uma agulha não se perde). Ali se perdem (como um relógio não se quebra).
Ali se perdem como um espelho não se quebra. Ali se perdem como se perde a água derramada: sem o dente seco com que de repente num homem se rompe o fio de homem.
Na água do rio, lentamente, se vão perdendo em lama; numa lama que pouco a pouco também não pode falar: que pouco a pouco ganha os gestos defuntos da lama; o sangue de goma, o olho paralítico da lama.
Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem.
Difícil é saber se aquele homem já não está mais aquém do homem; mais aquém do homem ao menos capaz de roer os ossos do ofício; capaz de sangrar na praça; capaz de gritar se a moenda lhe mastiga o braço; capaz de ter a vida mastigada e não apenas dissolvida (naquela água macia que amolece seus ossos como amoleceu as pedras).
III. Fábula do Capibaribe
A cidade é fecundada por aquela espada que se derrama, por aquela úmida gengiva de espada.
No extremo do rio o mar se estendia, como camisa ou lençol, sobre seus esqueletos de areia lavada.
(Como o rio era um cachorro, o mar podia ser uma bandeira azul e branca desdobrada no extremo do curso — ou do mastro — do rio.
Uma bandeira que tivesse dentes: que o mar está sempre com seus dentes e seu sabão roendo suas praias.
Uma bandeira que tivesse dentes: como um poeta puro polindo esqueletos, como um roedor puro, um polícia puro elaborando esqueletos, o mar, com afã, está sempre outra vez lavando seu puro esqueleto de areia.
O mar e seu incenso, o mar e seus ácidos, o mar e a boca de seus ácidos, o mar e seu estômago que come e se come, o mar e sua carne vidrada, de estátua, seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer a mesma coisa, o mar e seu tão puro professor de geometria).
O rio teme aquele mar como um cachorro teme uma porta entretanto aberta, como um mendigo, a igreja aparentemente aberta.
Primeiro, o mar devolve o rio. Fecha o mar ao rio seus brancos lençóis. O mar se fecha a tudo o que no rio são flores de terra, imagem de cão ou mendigo.
Depois, o mar invade o rio. Quer o mar destruir no rio suas flores de terra inchada, tudo o que nessa terra pode crescer e explodir, como uma ilha, uma fruta.
Mas antes de ir ao mar o rio se detém em mangues de água parada. Junta-se o rio a outros rios numa laguna, em pântanos onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio a outros rios. Juntos, todos os rios preparam sua luta de água parada, sua luta de fruta parada.
(Como o rio era um cachorro, como o mar era uma bandeira, aqueles mangues são uma enorme fruta:
A mesma máquina paciente e útil de uma fruta; a mesma força invencível e anônima de uma fruta — trabalhando ainda seu açúcar depois de cortada —.
Como gota a gota até o açúcar, gota a gota até as coroas de terra; como gota a gota até uma nova planta, gota a gota até as ilhas súbitas aflorando alegres).
IV. Discurso do Capibaribe
Aquele rio está na memória como um cão vivo dentro de uma sala. Como um cão vivo dentro de um bolso. Como um cão vivo debaixo dos lençóis, debaixo da camisa, da pele.
Um cão, porque vive, é agudo. O que vive não entorpece. O que vive fere. O homem, porque vive, choca com o que vive. Viver é ir entre o que vive.
O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio.
Como todo o real é espesso. Aquele rio é espesso e real. Como uma maçã é espessa. Como um cachorro é mais espesso do que uma maçã. Como é mais espesso o sangue do cachorro do que o próprio cachorro. Como é mais espesso um homem do que o sangue de um cachorro. Como é muito mais espesso o sangue de um homem do que o sonho de um homem.
Espesso como uma maçã é espessa. Como uma maçã é muito mais espessa se um homem a come do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa se a fome a come. Como é ainda muito mais espessa se não a pode comer a fome que a vê.
Aquele rio é espesso como o real mais espesso. Espesso por sua paisagem espessa, onde a fome estende seus batalhões de secretas e íntimas formigas.
E espesso por sua fábula espessa; pelo fluir de suas geléias de terra; ao parir suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida, como uma fruta é mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessa que sua árvore, etc. etc.
Espesso, porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu vôo).
III. Fábula do Capibaribe
A cidade é fecundada por aquela espada que se derrama, por aquela úmida gengiva de espada.
No extremo do rio o mar se estendia, como camisa ou lençol, sobre seus esqueletos de areia lavada.
(Como o rio era um cachorro, o mar podia ser uma bandeira azul e branca desdobrada no extremo do curso — ou do mastro — do rio.
Uma bandeira que tivesse dentes: que o mar está sempre com seus dentes e seu sabão roendo suas praias.
Uma bandeira que tivesse dentes: como um poeta puro polindo esqueletos, como um roedor puro, um polícia puro elaborando esqueletos, o mar, com afã, está sempre outra vez lavando seu puro esqueleto de areia.
O mar e seu incenso, o mar e seus ácidos, o mar e a boca de seus ácidos, o mar e seu estômago que come e se come, o mar e sua carne vidrada, de estátua, seu silêncio, alcançado à custa de sempre dizer a mesma coisa, o mar e seu tão puro professor de geometria).
O rio teme aquele mar como um cachorro teme uma porta entretanto aberta, como um mendigo, a igreja aparentemente aberta.
Primeiro, o mar devolve o rio. Fecha o mar ao rio seus brancos lençóis. O mar se fecha a tudo o que no rio são flores de terra, imagem de cão ou mendigo.
Depois, o mar invade o rio. Quer o mar destruir no rio suas flores de terra inchada, tudo o que nessa terra pode crescer e explodir, como uma ilha, uma fruta.
Mas antes de ir ao mar o rio se detém em mangues de água parada. Junta-se o rio a outros rios numa laguna, em pântanos onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio a outros rios. Juntos, todos os rios preparam sua luta de água parada, sua luta de fruta parada.
(Como o rio era um cachorro, como o mar era uma bandeira, aqueles mangues são uma enorme fruta:
A mesma máquina paciente e útil de uma fruta; a mesma força invencível e anônima de uma fruta — trabalhando ainda seu açúcar depois de cortada —.
Como gota a gota até o açúcar, gota a gota até as coroas de terra; como gota a gota até uma nova planta, gota a gota até as ilhas súbitas aflorando alegres).
IV. Discurso do Capibaribe
Aquele rio está na memória como um cão vivo dentro de uma sala. Como um cão vivo dentro de um bolso. Como um cão vivo debaixo dos lençóis, debaixo da camisa, da pele.
Um cão, porque vive, é agudo. O que vive não entorpece. O que vive fere. O homem, porque vive, choca com o que vive. Viver é ir entre o que vive.
O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio.
Como todo o real é espesso. Aquele rio é espesso e real. Como uma maçã é espessa. Como um cachorro é mais espesso do que uma maçã. Como é mais espesso o sangue do cachorro do que o próprio cachorro. Como é mais espesso um homem do que o sangue de um cachorro. Como é muito mais espesso o sangue de um homem do que o sonho de um homem.
Espesso como uma maçã é espessa. Como uma maçã é muito mais espessa se um homem a come do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa se a fome a come. Como é ainda muito mais espessa se não a pode comer a fome que a vê.
Aquele rio é espesso como o real mais espesso. Espesso por sua paisagem espessa, onde a fome estende seus batalhões de secretas e íntimas formigas.
E espesso por sua fábula espessa; pelo fluir de suas geléias de terra; ao parir suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida, como uma fruta é mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessa que sua árvore, etc. etc.
Espesso, porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu vôo). Fonte parcial: Flávia Suassuna, professora de Literatura e escritora
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