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08/03/2013

Almeida Faria sobre Ariano Suassuna


Almeida Faria (centro) e Ariano Suassuna (dir.) na palestra sobre Utopia, Messianismo e Sebastianismo. VIII Fliporto - Olinda, Pernambuco, Brasil. 16/11/2012. 

                                     A espera cíclica de uma solução 
O escritor português Almeida Faria conversou com o blog literário e nos falou da sua admiração por Ariano Suassuna, que estará ao seu lado numa das mesas da Fliporto e da força da expressão “sebastianismo” no mundo atual.
1 – O senhor poderia falar um pouco da sua impressão em relação à obra de Ariano Suassuna, que estará ao seu lado numa das mesas da Fliporto?
 - A minha relação com a obra de Suassuna começou vai para meio século e vem progredindo por saltos e acasos. Em mil novecentos e sessenta e quatro, por um golpe de sorte, descobri num alfarrabista da Rua do Poço dos Negros, em Lisboa,Uma Mulher Vestida de Sol, sua primeira peça. O poético título, inspirado noApocalipse, levou-me a comprar sem hesitar aquela edição da Universidade do Recife, de capa amarelo torrado, com um sol vermelho baço sobre fundo acastanhado.
Tinha eu vinte e poucos anos, publicara dois romances e sonhava escrever teatro. Porém, no Portugal de então, havia um óbice capaz de desencorajar quaisquer veleidades teatrais: a imprensa periódica, o cinema e o teatro eram submetidos a uma férrea Censura Prévia. A ditadura de Salazar achava que, num país maioritariamente analfabeto, mais perigosos e potencialmente mais subversivos que os livros eram alguns espectáculos. Autores como Sartre, Peter Weiss e outros não eram encenáveis nem, nalguns casos, publicáveis. Assim se explica que boa parte da minha geração desconhecesse Suassuna até ao sucesso doAuto da Compadecida. O qual, graças às mil maravilhas do You Tube, vi no meu computador.
Por uma dessas coincidências que o surpreendente espectáculo da vida por vezes nos reserva, há anos viajei com Selton Mello, o Chicó pícaro da mais recente versão do Auto da Compadecida, num voo São Paulo-Rio. Ambos tínhamos assistido na véspera, em São Paulo, à antestreia de Lavoura Arcaica, filme baseado no romance de Raduan Nassar, amigo de longa data, em que Selton era o protagonista.
Das muitas peças de Suassuna, li mais três além da primeira: O Santo e a Porca,na qual Santo António, o casamenteiro de Lisboa ou de Pádua (tanto faz) é um excelente exemplo de „graça e astúcia cabocla“ (palavras de Carlos Drummond de Andrade); O Casamento Suspeitoso; e, enfim, A Pena e a Lei.
Em mil novecentos e sessenta e oito, sendo eu escritor residente nos Estados Unidos, palestrei em diversas universidades e numa delas conheci um bem disposto professor brasileiro que me contou como começara a sua fugaz carreira teatral encarnando a personagem de Joaquim na montagem inicial de A Pena e a Lei no Teatro do Parque, aqui ao lado.
Nos anos setenta comprei o Romance d´A PEDRA DO REINO e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, cuja epígrafe de abertura é uma frase atribuída a „DOM SEBASTIÃO, O DESEJADO – Rei de Portugal, do Brasil e do Sertão“. As maiúsculas do título e da epígrafe não são minhas, são da edição original que anotei e sublinhei.
Estas sucessivas aproximações às ficções de Suassuna dão-me a impressão de conhecê-lo já há décadas. Na verdade, nunca nos encontrámos.
- Em que medida a expressão “sebastianismo” ainda decifra o povo português ou mesmo o brasileiro, já que tivemos movimentos de sebastianismo ao longo da nossa história?
- Não sei se "decifra" ou não. Quanto aos portugueses, o sebastianismo é uma forma de messianismo, é a espera cíclica de uma solução vinda de fora, uma frágil fé ou esperança a que nos agarramos em momentos de aflição. D. Sebastião foi um pobre-diabo e uma figura trágica. O príncipe D. João, seu pai, morreu aos dezasseis anos, antes mesmo de o filho nascer. A mãe, Dª Joana de Áustria, filha do imperador Carlos V e portanto irmã de Felipe II, rei de Espanha, casou aos dezanove anos e ficou viúva menos de um ano depois. Cumprido o dever de dar um herdeiro à coroa portuguesa, regressou a Madrid onde fundou o mosteiro das Descalças Reais para ela própria e nele viveu até morrer. Nunca mais viu o filho. Já em criança cognominado o Desejado, órfão de pai e abandonado pela mãe, D. Sebastião foi educado pelos jesuítas e pela avó, Dª Catarina de Áustria, num caldo cultural que o levou a sonhar ser um herói, virgem como Galahad e imortal como outros cavaleiros da Távola Redonda. Tinha vinte e quatro anos quando, para escapar à obrigação de casar, decidiu sem mais nem quê ir atacar os “infiéis” no Norte de África Em Agosto de 1578, após uma viagem em centenas de barcos, à frente de um exército parcialmente formado por milhares de mercenários de toda a Europa, o incauto rei, perseguindo o “inimigo” que fingia fugir dele, avançou deserto a dentro. Sob um sol fulminante, com homens e cavalos sequiosos, exaustos, num lugar chamado Alcácer Quibir, os cristãos foram em poucas horas massacrados e o rei nunca mais foi visto. Alguns dos grandes do reino, distinguíveis pela riqueza das armas e armaduras, e pela raça e jaezes dos cavalos, foram poupados a fim de serem trocados por rendosos resgates. Como a nobreza devia morrer pelo rei ou com o rei, os sobreviventes fizeram constar que o rei desaparecera, que se tornara Encoberto e iria voltar. O país inteiro ficou à espera dele. Sem filhos nem irmãos, o seu sucessor mais próximo era o tio e primo em segundo grau, Felipe II, rei de Espanha e de um mundo “onde o sol nunca se punha”. Melhor que eu aqui em duas linhas, o poeta Hans Magnus Enzensberger conta aliás esta história sebástica, em discurso direto que me é atribuído, num dos brilhantes ensaios de Ach Europa! (A Outra Europa. Impressões de sete países europeus, com um epílogo de 2006, na edição brasileira da Companhia das Letras). O primeiro profeta do Encoberto foi o visionário Bandarra, um sapateiro nascido em Trancoso no ano em que os portugueses chegaram ao Brasil. Retomando a lenda céltica de um rei adormecido numa ilha envolta em névoa, publicou as Trovas anunciando a vinda do rei Encoberto. Naqueles turvos tempos de Contra- Reforma, boa parte da Igreja Católica preferia a santa ignorância, e quem conhecesse um pouco do Antigo Testamento era suspeito. Acusado de judaísmo, o sapateiro foi preso e levado, em 1541, numa das sinistras procissões que antecediam os autos-da-fé. Não se sabe porquê, escapou à fogueira. No século seguinte surgiu o missionário do sebastianismo, aquele luso-brasileiro Padre Vieira a quem Fernando Pessoa chamou “imperador da língua portuguesa”. Igualmente perseguido e preso pela Inquisição, valeu-lhe a proteção do rei, que o mandou em secretas e delicadas tarefas diplomáticas à Holanda e a Roma. Regressado a Portugal, teve o cuidado de deixar inédito o magno tratado milenarista e bíblico intitulado História do Futuro. Mais perto de nós, o mito encontrou o seu mais inspirado defensor em Fernando Pessoa, que põe na boca do Desejado a defesa da sua orgulhosa loucura:
Louco, sim, louco porque quis grandeza Qual a sorte a não dá (…) Sem a loucura, que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria.
No meu romance O Conquistador narro o aparecimento fantástico de uma criança fisicamente semelhante a D. Sebastião, na manhã enevoada de um dia de São Sebastião, vinte de Janeiro, dia do nascimento do rei. O incipit romanesco acontece a vinte de Janeiro de 1954, quatro séculos exatos, dia por dia, sobre a data em que nasceu o Desejado. Mas o meu protagonista tem outras ambições, e são outras as suas conquistas. Em manhãs de nevoeiro ouve-se aqui dizer que é um dia ideal para D. Sebastião voltar. E hoje mesmo, 3 de novembro, no Público, o mais prestigiado diário português, o acutilante cronista Vasco Pulido Valente termina assim o seu artigo de opinião sobre a desgraça financeira e política do país: “Se alguém encontrar D. Sebastião numa manhã de nevoeiro, por favor escreva para este jornal.”


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