Livro de preces judaicas, Sinagoga Kahal Zur Israel, a primeira das Américas. Recife Antigo, Rua do Bom Jesus.
“Aconteceu por duas ou três
vezes de não termos dinheiro para comprar os mantimentos para o shabat. Então
minha mãe fitava meu pai bem nos olhos, e ele compreendia que era chegada a
hora da escolha e se aproximava da estante de livros. Era um homem de sólidos princípios
morais e sabia que o pão devia preceder os livros e que o mais importante de
tudo devia ser o cuidado com o filho. Lembro-me bem de suas costas curvadas ao
sair de casa, levando três ou quatro dos seus queridos livros. Com o coração
apertado, ele ia à loja do sr. Meyer vender alguns exemplares valiosos como se
os cortasse de sua própria carne. Assim curvadas certamente estavam as costas
de Abraão ao sair de sua tenda de madrugada, carregando Isaac no ombro a
caminho do monte Moriá.
Eu podia adivinhar seu
sofrimento: meu pai tinha uma relação sensual com os livros. Gostava de
apalpar, sentir, folhear, acariciar, cheirar. Era um insaciável caçador de
livros, ia logo pegando e folheando, mesmo na biblioteca de desconhecidos. E a
verdade é que os livros daquele tempo eram muito mais sensuais que os de hoje.
Havia o que cheirar, e havia o que apalpar e acariciar. Havia livros com letras
douradas gravadas sobre perfumadas encadernações de couro, levemente ásperas, cujo
toque provocava arrepios na pele, como se você tocasse em algo oculto e
desconhecido, algo que estremecesse um pouquinho ao toque dos dedos. E havia
livros encadernados em cartão revestido de tecido, colados com uma cola de perfume
extremamente voluptuoso. Cada livro tinha seu próprio odor secreto e excitante.
Às vezes a encadernação de tecido se soltava um pouco do cartão, deixando
entrever uma nesga, como uma saia muito curta, e era difícil resistir à
tentação de dar uma espiada naquele espaço ensombrecido entre o corpo e a
roupagem, e ali aspirar aquelas fragrâncias vertiginosas.” – Amós Oz, “De Amor
e Trevas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 31. Tradução do hebraico
de Milton Lando.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário